Introdução
Os modelos hidrodinâmicos são ferramentas que auxiliam a entender o comportamento de uma onda de cheia que se desloca em uma topografia seguindo as leis de conservação de massa e momento. Nesse texto vamos abordar a modelagem hidrodinâmica 2D.
A aplicação de modelagem hidrodinâmica é extensa, e pode ser utilizada para modelar fenômenos como (i) rompimento de barragens, (ii) propagação de cheia em canais, (iii) modelagem de sedimentação, (iv) análise de emissários, (v) e qualquer outro tipo de escoamento que sofra com condições variadas no espaço e no tempo (transientes), mas sob a pressão atmosférica.
Nesse artigo, vamos abordar a modelagem 2D.
Se você ainda não viu o primeiro artigo sobre modelagem hidrodinâmica, recomendo ve-lo clicando aqui ou no link abaixo:
Rompimento de Barragens – Princípios da Modelagem Hidrodinâmica e Modelo 1D
Modelagem Hidrodinâmica 2D
Conservação de Quantidade de Movimento.
De modo geral, a equação de momentum de águas rasas pode ser escrita em formato vetorial, da seguinte forma:
$$ \frac{\partial \mathbf{U}}{\partial \mathrm{t}}+\nabla \cdot \mathbf{F}=\mathrm{\mathbf{S}} $$
Onde $\mathbf{U}$ é o vetor de quantidades conservadas, $\mathbf{F}$ é o tensor de fluxo e $\mathbf{S}$ um termo de fonte.
O vetor de quantidades conservadas é escrito como:
$$
\mathbf{U}=\left(\begin{array}{c}
\varphi \\
\varphi \mathrm{u} \\
\varphi\mathrm{v}
\end{array}\right)
$$
onde $\varphi = gh$, $g$ é aceleração da gravidade, $h$ é a altura d’água, $u$ é a velocidade na componente $x$ do movimento e $v$ na componente $y$ do movimento, ambos no plano.
Já o vetor $\mathbf{F}$ pode ser escrito como:
$$
\mathbf{F}=\left(\begin{array}{c}
\varphi \mathbf{V} \\
\varphi \mathbf{u} \mathbf{V}+\varphi^2 \mathbf{i} / 2 \\
\varphi \vee \mathbf{V}+\varphi^2 \mathbf{j} / 2
\end{array}\right)
$$
O vetor de velocidade é definido a partir dos versores $\mathbf{i}$ e $\mathbf{j}$ nas direções $x$ e$y$ do escoamento, respectivamente, de modo que $\mathbf{V} = u \mathbf{i} + v \mathbf{j}$
O termo de fonte coleta declividades de fundo, de fricção e arrasto do vento, e pode ser escrito como:
$$
\mathrm{S}=\mathrm{S}_{\mathrm{b}}+\mathrm{S}_{\mathrm{f}}+\mathrm{S}_{\mathrm{w}}
$$
Termos Fonte Eq. de Quantidade de Movimento.
Detalhando cada um deles, começando com o termo de declividades de fundo, temos que:
$$
\mathrm{S}_{\mathrm{b}}=\left(\begin{array}{c}
0 \\
\varphi \mathrm{g} \partial \mathrm{H} / \partial \mathrm{x} \\
\varphi \mathrm{g} \partial \mathrm{H} / \partial \mathrm{y}
\end{array}\right)
$$
onde $H$ é a elevação do fundo proveniente da topografia. O termo $ \partial \mathrm{H} / \partial \mathrm{x}$ nada mais é do que a declividade na direção $x$, por exemplo.
Já a declividade da linha de fricção pode ser calculada como:
$$
S_{\mathrm f}=\left(\begin{array}{c}
0 \\
-(g / \rho) \tau_{f x} \\
-(g / \rho) \tau_{f y}
\end{array}\right)
$$
onde $\tau_{f x}$ é a componente em $x$ da tensão de cisalhamento que fornece resistência ao escoamento, enquanto que $\tau_{f y}$ é a componente na direção $y$. Já $\rho$ é o peso específico da água na tempertura adotada.
Formulação da Eq. de Resistência
Essas componentes podem ser calculadas utilizando-se do coeficiente de Chezy ($C$), que se aplicado nas equações abaixo resulta nas tensões de cisalhamento necessárias para resolver as equações de águas rasas.
$$
\begin{gathered}
\tau_{f x}=\rho C_f u \sqrt{u^2+v^2} \\
\tau_{f y}=\rho C_f v \sqrt{u^2+v^2} \\
C_f=g / C^2
\end{gathered}
$$
$C_f$ pode ser calculado também em função do coeficiente de Manning, de modo que:
$$C_f = n^2$$
Usando-se a equação de Manning e $S_f$, chegamos que
$$
S_f = C_f \frac{Q|Q|}{\Delta \bar{x} h^{10 / 3}}
$$
onde $Q$ é a vazão ($Q = \sqrt{(\Delta \bar{x} h u)^2 + (\Delta \bar{x} h v)^2 }$ e $\Delta \bar{x}$ é a largura média do tamanho dos pixels espaciais da simulação.
De modo semelhante, o cálculo dos termos fonte para as forças resistentes do vento pode ser escrito como:
$$
S_w=\left(\begin{array}{c}
0 \\
(g / \rho) \tau_{w x} \\
(g / \rho) \tau_{w y}
\end{array}\right)
$$
A dificuldade está, no entanto, em se obter os valores representativos de tensão de cisalhamento para as forças de vento, que em muitos casos são negligenciadas.
Associando as equações anteriores com uma equação de conservação da massa, temos as equações de águas rasas:
$$
\frac{\partial h}{\partial t}+\frac{\partial hu}{\partial x}+\frac{\partial hv}{\partial y}=q_i + q_j + P – i,
$$
$$
\frac{\partial \mathbf{U}}{\partial \mathrm{t}}+\nabla \cdot \mathbf{F}=\mathrm{S}
$$
onde $q_i$ é a contribuição lateral de fluxo na direção $x$, $q_j$ na direção $y$, $P$ é a precipitação e $i$ a infiltração de água no solo.
Aproximações das equações de águas rasas
A complexidade da solução completa de águas rasas muitas vezes leva ao uso de simplificações.
Onda Cinemática
A primeira delas é a da onda cinemática, onde os termos de aceleração local, convectiva e de pressão são desprezados e a força de fricção é assumida como igual a componente no escoamento da força peso.
Esse tipo de aplicação é mais utilizada em regimes de escoamento mais brancos e uniformes. É notável o ganho de performance computacional uma vez que inúmeros termos diferenciais são negligenciados.
Em casos com alta decividade, essa hipótese pode ser razoavelmente aceita.
No entanto, é também notável a perda de performance em representar corretamente transientes hidráulicos.
Matematicamente estamos dizendo que:
$$ g(S_f – S_0) = 0,~~~ S_f = S_0 $$
Onda Difusa
Outra opção que é mais viável para explicar escoamentos com transientes é o uso da onda difusa.
A onda difusa é um tipo de onda que não conta com termos de aceleração local e convectiva por desprezar os termos inerciais, mas conta com a parcela do gradiente de pressão hidrostática da água.
Podemos dizer que a onda difusa é uma onda de inércia 0.
Matematicamente falando, estamos dizendo que:
$$
g \frac{\partial h}{\partial x}+g\left(S_f-S_0\right)=0
$$
$$
\frac{\partial h}{\partial x} = \left(S_f-S_0\right)
$$
Ela é capaz de simular fenômenos mais complexos como remanso e alterações de seção; no entanto, falha em escoamento bruscamente variados.
De modo geral, as forças de fricção não são iguais a componente da força peso na direção do escoamento. Assim, o fluido sofre uma força resultante e, portanto, é acelerado.
Dados de Entrada – Modelagem Hidrodinâmica 2D
- Modelo Digital do Terreno (MDT)
- Mapas de uso do solo
- Coeficientes de rugosidade para cada célula do domínio
- Condições de contorno de entrada como hidrogramas em pontos específicos, níveis d’água e chuva constante ou espacialmente variável
- Chuva efetiva, isto é, a chuva já subtraída de processos como a evaporação ou evapotranspiração
- Controle dos time-steps do modelo através do número de Courant desejado
Programas de Análise – Modelagem Hidrodinâmica 2D
Alguns programas computacionais podem auxiliar no delineamento de manchas de inundação através da solução das equações de águas rasas.
Talvez o mais famoso deles seja o HydrologIc Engineering Center – River System Analysis (HEC-RAS 2D).
O software conta com diversos solvers implícitos das equações de águas rasas e também possibilita o uso da onda difusa ou da onda dinâmica, isto é, a onda com todos os termos das equações de águas rasas.
Outro bom candidato, agora mais apicado na Europa, é o Tucflow, que já é pago e não tem uma comunidade tão extensa quando o HEC-RAS.
Alternativamente, há uma grande quantidade de artigos científicos que, de algum modo, desenvolvem modelos hidrodinâmicos 2D.
Um desses, inclusive, fora elaborado por mim, disponível aqui ou no link abaixo:
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0022169423009241
Nesse artigo eu e colaboradores desenvolvemos um modelo hidrodinâmico 2D que conta com modelagems espaciais de infiltração, evapotranspiração, transporte de poluentes, dado entradas espaciais de chuva ou hidrogramas de entrada em pontos específicos.
Esse modelo usa a simplificação da onda difusa e resolve as equações de águas rasas através de uma simplificação chamada de Celular Automata.
O programa, escrito em MatLAB, é disponível gratuitamente em minha conta no github.
Processo de Calibração e Validação
O processo de calibrção de modelos hidrodinâmicos 2D pode ser feito de várias formas, a depender das observações disponíveis.
Num cenário ideal, observações de vazão, nível, ou ambos tanto no exutório da bacia quando em pontos internos são um ótimo cenário para calibrar um modelo hidrológico-hidráulico 2D.
Outra alternativa seria o uso de mapas de máxima lâmina de inundação, ou seja, manchas de inundação observadas que podem ter sido adquiridas por imagens de satélite, por exemplo.
Alternativamente, em bacias com poucos dados, informações socio-hidrológicas, isto é, dados obtidos a partir de pesquisas da população afetada podem ser usados para calibrar os modelos.
Naturalmente, a equifinalidade pode ser um grande problema na calibração, especialmente quando dados escassos e de pouca qualidade são utilizados para a etapa de calibração do modelo.
Desse modo, é importante lembrar de usar parâmetros dentro da realidade física esperada e evitar modelos calibrados pelas razões erradas que, certamente, vão gerar resultados irrealistas na etapa de validação.
Além disso, calibrações automáticas de modelos 2D, usando-se de otimização, pode ser um caminho interessante em problenas não tão complexos.
Pros e Contras da Modelagem 2D
Todo modelo é uma simplificação da realidade.
Incertezas, falhas conceituais, ruídos nas observações, tudo isso pode influenciar a capacidade de um modelo prever o comportamento do sistema de interesse.
Modelos 2D quando comparados a Modelos 1D tem algumas importante vantagens como:
- Apresetam resultados espaciais, permitindo identificar mais acuradamente áreas de risco ou de acumulação de água
- Permitem ajustar a precisão dos resultados através da adoção da resolução dos cálculos, isto é, o mesmo que vemos em uma imagem de alta resolução acontece com modelos 2D. O nível de detalhe pode ser ajustado de acordo com o objetivo da análise hidrodinâmica
- Permitem avaliar processos ambientais e hidrológicos de uma maneira espacializada
No entanto, o custo de uma análise mais detalhada é, naturalmente, o aumento demasiado da demanda computacional.
Assim, modelos 2D tem suas desvantagens resumidas em:
- Custo computacional relativamente elevado
- Necessidade de dados mais robustos e extensos para capturar os processos importantes
- A qualidade dos resultados infere diretamente nos dados de entrada
- O modelo digital de elevação em formato raster de alta resolução é um produto relativamente caro, especialmente no Brasil
- Informações espaciais de chuva em resolução adequada pode ser um problema para o Brasil
Conclusão
Nesse artigo, uma abordagem de Modelagem Hidrodinâmica 2D foi apresentada.
Conseguimos os dados de entrada, pros e contras da modelagem da propagação de ondas de cheia em 2 dimensões.
Além disso, alguns exemplos de softwares foram apresentados e são uma boa alternativa para a elaboração de estudos de inundação.